Sumários

Liberalidade, felicidade, utopia, valores da literatura artística do Renascimento

12 Novembro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumiraa que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza.

Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura portuguesas de Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã.  

Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século.  A carta de Diogo Teixeira a D. sebastião, em 1577, reivindicando um estatuto de liberalidade para si e a arte da Pintura integra-se nesse espírito.

Com o início da Contra-Reforma, a Igreja desenvolveu formidável  campanha a fim de controlar os excessos das imagens expostas ao culto e regulamentar o seu bom uso. A LIBERALIDADE associa-se com o sentido do DECORUM. O livro do Padre Jerónimo Nadal Evangelicae Historiae Imagines (Antuérpia, 1593), com muitas gravuras, foi a mais popular para redefinir a iconografia credível e impôr uma «arte correcta». A 'Orbita Probitatis e o Veridicus Christianus' de Johannes David foi outra obra popular na Europa contra-reformada e que grangeia natural sucesso, influenciando clientes e artistas. Estas e outras obras dadas à estampa, como o livro de Sucquet, propunham combater o «dogma errado», a «formosura dissoluta», e a violência contra «imagens sagradas», em nome do Decorum e da «verdade cristã».


As 'Metamorfoses' de Ovídio e seu impacto na literatura e nas artes na Idade Moderna.

10 Novembro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

•Públio Ovídio Naso, conhecido como Ovídio, nasceu em Sulmona em 43 a.C. e morreu em Constança, na actual Roménia, a 17 ou 18 d.C. Grande poeta, foi autor de HEROIDES, AMORES, ARS AMATORIA, poesia erótica, o poema mitológico das METAMORFOSES, e FASTOS, dedicado ao calendário romano, além de duas coletâneas de poemas escritos no exílio. Ovídio foi também o autor de várias peças menores, REMEDIA AMORIS, MEDICAMINA FACIEI FEMINEAE, e Íbis, um longo poema sobre a maldição. Também é autor de uma tragédia perdida, MEDEIA. É considerado um mestre do dístico elegíaco e é tradicionalmente colocado ao lado de Virgílio e Horácio como um dos três poetas canónicos da poesia latina. Quintiliano considerava-o o último dos elegistas amorosos latinos canônicos. A sua poesia foi muito imitada durante a Antiguidade Clássica e a Idade Média. Influenciou Dante, Shakespeare, Milton…e continua a ser considerado uma das fontes mais importantes da Mitologia clássica. Seu estilo tem caráter jocoso e inteiramente pessoal — às vezes o eu írico de seus poemas são o próprio Ovídio. Escreveu sobre amor, sedução,  exílio, mitologia. Estudou Retórica com grandes mestres romanos, viajou a Atenas e à Ásia, exercendo cargos públicos com o objetivo de se tornar um Cícero, mas para desgosto do pai resolveu dedicar-se à poesia.O dístico elegíaco é a métrica mais comum nos seus poemas.

A temática ovidiana surge em força no século XVI em frescos, azulejos, iluminura, decorações murais, tapeçaria, etc. A importância das gravuras de Bernard Salomon e Virgil Solis (edições de Lyon) foi neste caso muito importante. Explicam-se e mostram-se vários exemplos de pintura e azulejaria portugueses.

Também no século XVII, durante a União Ibérica e após 1640, se incrementa em Portugal o gosto por estes temários, tanto na literatura como nas artes.  luz da tradição neo-platónica, a Mitologia clássica une-se à retórica cristã-tridentina e toma presença destacada nas festas públicas, no décor de salões e nas bibliotecas aristocráticas e monacais, caso de livros como estes: Metamorfoses de Ovídio, Emblematum, 1531, de Andrea Alciato, Imagini degli Dei degli Antichi, 1556, Vincenzo Cartari, Discorso intorno alle immagine sacre e profane, 1581, Gabriele Paleotti, Philosophia Secreta, 1585, Pérez de Moya, Hierogliphica, 1586, Pedro Valeriano, Tractatus de poesi e pictura ethica humana e fabulosa, 1593, A.Possevino, Iconologia, 1593, Cesare Ripa, Theatro de los Dioses de la Gentilidad, 1620-23, Fr. Baltasar de Vitoria, Coelum stellarum christianum, 1627, Julius Schiller, Mythologie, 1627, Jean Baudoin, ou ainda  L’art des emblèmes, 1684, Claude Menestrier.


O )Inconsciente Criativo e a Descoberta do Mundo Interior: a Arte brut, ou «art outsider».

5 Novembro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Do Palácio Ideal do carteiro Ferdinand Cheval, um sonho esculpido em pedra, às noções de inconsciente em Jung e freud, e aos momentos significativos do encontro entre psicologia e reflexão sobre arte  em Hans Prinzhorn (1886 - 1933) no livro 'Artistery of the Mentally Ill' (1922) e Jean Dubuffet. Este último, com a primeira Collection d’Art Brut, em 1945, reúne um dos acervos mais significativos de arte realizada em contexto psiquiátrico.  Dubuffet definiu nos seguintes termos o conceito de Art Brut:  « Nous entendons par-là des ouvrages exécutés par personnes indemnes de culture artistique […] Nous y assistons  à l’opération artistique toute pure, brute, réinventée dans l’entier de toutes ses phases par son auteur, à partir seulement de ses propres impulsions. De l’art donc où se manifeste la seule fonction de l’invention […].» (L’homme du commun à l’ouvrage, 1973). O papel de Nise da Silveira, psicóloga brasileira que em 1951 funda o Museu das Imagens do Inconsciente onde expõe as obras dos seus pacientes. Os Museus Emygio Barros e Miguel Bombarda. A obra de Jackson Pollock, uma viagem ao inconsciente.


'Casos de estudo' para um modelo de ficha analítico-descritiva de obra de arte.

3 Novembro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Metodologia de apoio aos trabalhos práticos e 'casos de estudo' para um modelo de ficha analítico-descritiva de obra de arte.

 

Balanço de temas de trabalhos individuais definidos:

Adriana Costa – O quadro ‘Vesúvio’, de Henrique Pousão (1882): análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Alberta Nunes – A Janela da Casa do Capítulo do Convento de Cristo em Tomar: análise estética, iconográfica e simbólica.

Ana Margarida Félix – ‘Water Serpents’, de Klimt.

Ana Nóbrega – A Estátua Equestre de D. José  I na Praça do Comércio.

Andreia Marçal – ‘Tintoretto pintando a filha morta’ de Miguel Ângelo Lupi.

André Anselmo – Mosaicos Bizantinos na Basílica de São Vital de Ravena: painel de Justiniano (estudo de um aspecto particular da obra).

António Gonçalves – ‘Cavalgando a Morte’ de Basquiat.

Bárbara Ribeiro – ‘A linguagem’, de Alexandrte O’Neill: a definir…

Beatriz Ferreira – Uma ‘igreja forrada a ouro’: o conceito de ‘obra de arte total’ na igreja de Santo António de Lagos.

Beatriz Santos – As representações de ‘Salomé com a cabeça de S. João Baptista’ de Lucas Cranach e de Caravaggio: estudo comparativo.

Beatriz da Silva – ‘Templo Domini’, comparação para a Basílica do Santo Sepulcro.

Blanca Alejandrina Abranches Baeza – O ‘Livro de Horas’ de Margarida de Clèves.

Carla Paradela (com Rafaela Filipa Barreiro da Silva) – Os Painéis da Gare Marítima de Alcântara por José de Almada-Negreiros.

Catarina Nunes Bárbara – ‘Impressão do Nascer do Sol’ de Claude Monet.

Claudia Caballero Neyra – ‘David com a cabeça de Golias’ de Caravaggio.

Cristiana Gaspar – A Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes em Torres Novas, projecto de César Ruivo.

Duarte Fraústo – O Arco Triunfal da Praça de Espanha: estudo cripto-artístico de uma obra demolida e reinstalada.

Edinílvia Rodrigues – D(oo)r, S(am), Pedro Cabrita Reis (1900): análise de um ‘estudo de caso’.

Edna Correia – Otto Dix, ‘Sylvia Van Haerden’: análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Filipa Castanheira – A Custódia de Santa Maria de Belém: análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Francisca Portugal – A ‘Adoração dos Pastores’ (1669) de Josefa de Óbidos: análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Frederico Pereira Martins e Filipa Rita – O mosaico Baptismo de Cristo de Agostino Masucci na Capela de São João Baptista (igreja jesuítica de São Roque): análise histórica, iconográfica, simbólica.

Gonçalo Gonçalves – Um quadro de Caravaggio, a ‘Prisão de Cristo’: análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Helena Chaves Bulcão – ‘Le Couple’, 1937, de Óscar Dominguez.

Inês Costa Monteiro Grilo – A tela de Pierre Auguste Renoir ‘Moulin de la Galette’ (1876).

Inês Figueiredo Jorge – Análise de um Vaso Calyx, Ática, no Museu Calouste Gulbenkian.

Inês Fonseca – Os Painéis de São Vicente de Fora (um aspecto a definir…).

Inês Lima – A capela-mor da igreja de São Domingos de Lisboa por João Frederico Ludovice: análise histórica, artística, iconográfica, simbólica e critérios de conservação.

Inês Macedo (com Tiago Blé) – Os Painéis de Almada Negreiros no edifício do Diário de Notícias.

Inês Mata – ‘Pintura Habitada’ de Helena Almeida.

Inês Saiote – ‘Conversação’ de Peeter de Hoock, no MNAA: análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Isabel Silva – A Ruína como Ornamento (a precisar melhor).

Jessica Fonseca – A representação de ‘Hamlet’, de William Shakespearte, na iconografia artística.

Jéssica Sousa Louro – ‘Le grand spectacle’ de Basquiat, um ‘estudo de caso’.

Joana Andreia Lopes – ‘As Meninas’ de Diego Velázquez (precisar)…

Joana Martins Borralho -- «Procissão do Corpus Christi» de Amadeo de Souza-Cardoso: análise estética, iconográfica e simbólica.

Joana Sebastião e Fábio Almeida – O Convento de Santa Cruz dos Capuchos na Caparica: análise de um dos seus aspectos artísticos.

João Faria – Maus – Art Spiegelman (BD).

João Grave – A escultura ‘Santas Mães’ de Aljubarrota: sensibilidade de uma peça vernacular.

Joseph Seabra – Aspectos de práticas iconoclásticas na arte contemporânea.

Lais Alexandra Santos Gamito – ‘O velho guitarrista cego’ de Pablo Picasso.

Laura Pires – René Magrittre: análise de ‘Le Gouffre Argenté’.

Lina Azevedo – Os ‘Retratos de Fernando Pessoas’ de Almada Negreiros: análise histórica, estética, iconográfica, simbólica e comparatista.

Mariana Abdulrehman – A Quinta da Regaleira (aspecto a escolher para uma análise histórico-artística).

Mariana Lisboa – Jan Sebastien Bach, ‘Suite nº 1 cello’.

Mariana Santos Roque – ‘A Grande Onda de Kanagawa’, de Katsushika Hokusai.

Matilde Outeiro – O monumento ao Adamastor, de Júlio Vaz Júnior. Análise iconográfica, estilística e simbólica.

Marta Nunes (com Rita Pardal) – ‘Camões invocando as tágides’: leitura analítico-descritiva.

Mélanie Oliveira – O escadório da igreja de Nossa Senhora dos Remédios em Lamego e os seus englobantes: análise histórica, estética, iconográfica e simbólica.

Nadine Neto – A ‘Alegoria à Arte da Pintura’ de Johannes Vermeer: fortuna crítica e análise histórica, artística e simbólica.

Olavo Silva – O túmulo de D. João I e de D. Filipa de Lencastre na Capela do Fundador no Mosteiro de Santa Maria da Vitória: análise iconográfica, estilística e simbólica.

Pedro Brun da Silveira – Scrimshaw (leilão 166, lote 55, de Cabral Moncada Leilões): um ‘estudo de caso’.

Pedro Cantoneiro – A igreja do antigo Mosteiro de Jesus em Setúbal (aspecto a escolher)

Rafaela Filipa Barreiro da Silva (com Carla Paradela) – Os Painéis da Gare Marítima de Alcântara por José de Almada-Negreiros.

Rafaela Ramos de faria – ‘Las tentaciónes de Santo Antonio’ de Salvador Dalí.

Raquel Taborda Silva – O Retábulo do Cordeiro Místico de Jan van Eyck.

Rita Pardal (com Marta Nunes) – ‘Camões invocando as tágides’: leitura analítico-descritiva.

Rita Sousa – (obra de arte específica do) Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (aspecto a escolher).

Rute Ventura – ‘Quillebeuf, Foz do Sena’ (1833) de William Turner, Museu Calouste Gulbenkian.

Sara Cunha – Análise da escultura ‘Ao leme’, pelo escultor Francisco dos Santos, 1913, Jardim Roque Gameiro, Lisboa).

Sara Florêncio – O portal sul do mosteiro de Santa Maria de Belém: leitura artística, iconográfica e simbólica.

Telmo Alves – Tableau with yellow, black, blue and grey’, 1923, no Museu Berardo.

Teófono Leão Cardoso da Silva – Uma obra de El Greco (a definir).

Teresa Maia – A fotografia de Vivian Maier: a obsessão pelo retrato dos pobres no meio urbano.

Tiago Blé (com Inês Macedo) – Os Painéis de Almada Negreiros no edifício do Diário de Notícias.

Tomás Castro – Monumento ao Duque de Saldanha de Tomás Costa.


Um caso de estudo para a solidez das metodologhias: as 'Tróias' do pintor Diogo Pereira.

29 Outubro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Comenta-se uma 'ficha analítico-descritiva' em torno das «Tróias abrasadas» pintadas por Diogo Pereira no século XVII.  Conhecem-se hoje doze versões da Tróia abrasada da autoria de Diogo Pereira, e nessas pinturas revelam-se o engenhoso efeito fantasista, o recurso a atmosferas apocalípticas e derivações labirínticas dos planos, pese que ao nível das figuras o artista se mostre duro e com derivação de gravados. Três dessas Tróias, como a tela da colecção Franzini, de Milão (com o monograma D.P.p.), andavam até então atribuídas a François De Nommé, pintor lorenense conhecido em Nápoles como Monsú Desiderio, atribuição sem consistência histórica mas que atestava a qualidade do artista. A sequência de obras de Pereira, alvo de estudo e restauro, permitiu identificar um núcleo sólido de trabalhos e definir-lhe base estilística. Desta ‘reabilitação’ resultou que Pereira pudesse ser visto à luz das qualidades que o público do século XVII (e XVIII) justamente lhe destacou. Revelando falta de sólida formação, devido ao isolamento vivida por Portugal no segundo terço do século (e justifica juízos negativos como os que lhe dirigiu o Conde Raczynski em 1847), a verdade é que a paleta é solta e a modelação ousada, o paisagismo é idealizado e fantástico, as ‘rovine’ clássicas abundam, e essas características melhor o valorizam. Muitas das Tróias abrasadas se inspiram, no grupo de Eneias a transportar Anquises, em fontes gravadas como uma edição parisiense de 1584 do Emblemata Liber de Alciato, por Jean Richer, e a edição (Paris, 1619) das Metamorfoses de Ovídio, com gravuras de Jean Mathieu. Diogo Pereira esteve activo em Lisboa entre 1630 e 1658, data da morte, e realizou obra importante. Ligado às esferas políticas do tempo, época conturbada do Portugal Restaurado e das guerras com Castela, Pereira seguiu uma via artística distinta da corrente tenebrista oficial -- facto que contribuíu para o seu sucesso mas que justifica, também, que se tornasse de seguida um pintor muito esquecido. A fama deve-se a ter desenvolvido um ‘género’ ao tempo sem rival, como criador de catástrofes, fogos, Tróias abrasadas, Infernos, Sodomas, Meses, países, bambochatas, borrascas de mar, bodegones, dilúvios e temas afins. Nesse domínio, e com as devidas distâncias, Pereira foi uma espécie de Monsú Desiderio português de tal modo mostra paralelos com a arte daquele famoso pintor lorenense que se estabeleceu em Nápoles, chamado François de Nommé. Autor de telas extravagantes e caprichosas, Pereira integra-se melhor na tradição final do Maneirismo, pelo apego ao fantástico e ao surreal, do que no ‘realismo’ barroco da pintura oficial do seu tempo, a época de José do Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos ou Bento Coelho da Silveira.  Sabemos que em 1652 servia de escrivão na mesa de São Lucas, sendo mordomo em 1654, e de novo escrivão em 1658, na mesa presidida pela nobre amadora D. Maria Guadalupe de Lencastre e Cardenas, duquesa de Aveiro e mecenas das artes, falecendo nesse ano. Embora a tradição recolhida em 1758 por Pietro Guarienti diga que morreu pobre, o percurso documentado parece infirmar essa suposição.

Como escreveu o exigente crítico Félix da Costa Meesen no seu tratado Antiguidade da Arte da Pintura (1696), «Diogo Pereira genio raro, sempre se ocupou em incendios, Diluvios, Tromentas, noites pastoris, vistas varias de paizes com gados; no que foi tão celebre neste genero, como os mais peritos nas couzas de mayor empenho; e como o seu exercicio foi sempre imitar desgraças, nunca chegou a ver fortuna». Tal explica o sucesso: como especialista em Incêndios de Tróia, cenas pastoris, meses, países, Infernos, Sodomas abrasadas, bambochatas, fogos, dilúvios, borrascas de mar, bodegones, floreiros e temas de simbologia histórica-profana e tónus fantasista, teve fama no seu tempo e obra disputada por clientelas de renome. Ao lado de Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos e Bento Coelho, foi uma das estrelas da nossa pintura do século XVII. Trata-se de pintor singularíssimo, pelo engenho criativo e força revolucionária das touches. Famoso num ‘género’ que o aproxima do complexo François de Nommé (Monsú Desiderio) e demais pintores activos em Nápoles, resta saber por que vias se aproximou do mercado napolitano, território da Corte de Madrid, ainda que pudesse conhecer obras oriundas dessa ‘escola’ em palácios peninsulares. O poeta Diogo de Noronha e Nápoles, do partido brigantino, era um desses admiradores de Pereira e tinha, ademais, relações com a cidade italiana. O modo como o pintor se inspirou nessas fontes e a forma sedutora como usa a tradição do capricho arquitectural e a liberdade cenográfica das rovine, numa atitude internacional com esforço de actualização, torna-o afim a um mundo fantasista e onírico que o aproxima de mestres como Juan de la Corte, Francisco Collantes, Michel Bestard e, ainda, Claude Deruet, Sebastián Franck, David Teniers II, Didier Barra, Cornelio Brusco, Isaac Schawenbourg, Filippo Napoletano, François De Nommé. São essas, mais que os flamengos e holandeses do tipo Gerard Dou, as fontes artísticas precisas em que Pereira deve ser situado. As duas dezenas e meia de peças que hoje subsistem de Diogo Pereira assumem-se menos com uma «pintura de ar livre», no sentido tradicional e mais como divagações em torno de temas do Velho Testamento e da Antiguidade clássica, como arquitecturas idealizadas, traduzidas cenograficamente em efeitos de ilogismo que aparentam o pintor seiscentista (dentro das naturais distâncias) com o referido e misterioso Monsú Desiderio. Existem potencialidades de paisagista em Pereira, muito superiores às de pintor de figura, mas a sua visão da «realidade» pautou-se, não propriamente por registos de «ar livre» e sim como elocubrações intelectualistas em torno de um restrito temário que ao tempo fazia as delícias do coleccionismo erudito. Como pintor de caprichos, afirma-se na visão cenográfica das rovine e na liberdade das touches e a sua obra assume-se o melhor que, de género histórico-mitológico, subsiste no Seiscentismo nacional, com um detalhismo de arquitectura antiquizante, uma cenografia da paisagem idealizada e um sentido trágico da «catástrofe» que interpreta com grande dose de pessoalismo. As Tróias abrasadas de Pereira, com suas atmosferas apocalípticas e efeitos labirínticos, eram eficazes no tempo da Restauração, funcionando como arma de legitimação e propaganda da causa nacionalista dos Braganças. Após 1640, de facto, o tema adquiriu imensa popularidade: entre os documentados possuidores desses quadros estavam, entre outros, o Bispo D. Manuel da Cunha, capelão do rei, D. António Álvares da Cunha, senhor de Tábua, conspirador de 1640 e fundador da Academia dos Generosos, os membros das famílias Mascarenhas e Sousas, soldados da Restauração, o Conde de Tarouca, os Marqueses de Borba, Nisa e Orisol, D. Diogo de Noronha, D. Tomás de Noronha e Nápoles, etc. O tema era visto, nestes «anos de ferro» da Restauração portuguesa e das sangrentas guerras com Castela (1641-1668), como dotado de funções moralizantes que atestavam o Amor piedoso de Eneias (precursor de Jesus, segundo as interpretações da 4ª écloga do poema de Virgílio) que salva Anquises e os deuses Lares, simbolizando a fraternidade cristã; aliás, o tema justificava, também, a ideia da resistência dos povos face à tirania, pelo que servia bem a retórica cristã-brigantina à luz do espírito de 1640; em terceiro lugar, encarnava a tese da ancianidade de Portugal, uma tese legitimadora da Restauração através da lenda da fundação de cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias fugidos de Tróia (caso dos livros de Gabriel Pereira de Castro e de António de Sousa de Macedo, na senda dos de Frei Bernardo de Brito); enfim, simbolizava as virtudes do monarca cristão tal como a empresa XXVI da Idea del Principe Cristiano de Diego Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o cavalo de Tróia à astúcia face ao inimigo e ao alerta contra o perigo da falta de unidade nos reinos. A identidade de Eneias com o Restaurador transparece em parangonas de homenagem a D. João IV, em textos laudatórios oficiais (o da Universidade de Coimbra de 1641 aquando da aclamação) e em orações parenéticas. Dadas a conhecer com inesperado sucesso na exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque Portugais (Paris-Roma, 2001-2002) as Tróias destacaram, então, essa memória de intuitos político-parenéticos, em que o pintor se esmerou. O sentido do trágico, ao modo napolitano, interessou então a crítica, pela actualidade artística do seu autor, a sua ousadia plástica, e o facto de se tratar de nome praticamente desconhecido nos meios historiográficos e, ainda, nos círculos antiquários e de mercados da arte, onde estas obras passaram a ser muito revalorizadas.

As pinturas de Diogo Pereira assumem-se menos com uma «pintura de ar livre» e mais como divagações morais de temas do Velho Testamento e da Antiguidade clássica, como bem se destaca na peça da BNP. Existem potencialidades de paisagista superiores às de pintor de figura, mas em visão da realidade que se pauta com elocubrações intelectualistas em torno de um temário que ao tempo fazia as delícias do coleccionismo erudito. Como pintor de caprichos, pelo tónus fantástico, assume-se como o melhor que, de género histórico-mitológico, subsiste no tempo do Barroco nacional, com detalhismos antiquizantes, uma cenografia da paisagem idealizada e um sentido trágico da catástrofe, que o equiparam quase a um maneirista fora de época… Assume a identificação implícita da figura de Eneias como o rei-restaurador D. João IV, espécie de 'novo Eneias' libertador da pátria, campeão das liberdades cívicas, defensor da refundação de uma 'nova Roma' em Lisboa, e áspide da imagem do 'bom príncipe cristão' que conduz o antiquíssimo Portugal à tradição das glórias passadas. É por isso que estas pinturas eram tão estimadas pelas clientelas do tempo da Restauração, e que os partidários dos Braganças viam nessas obras um testemunho de parenetização de cunho nacionalista, com evidente carga simbólica: na evocação clássica da guerra de Tróia, o perfil de Eneias, salvador de Anquises, idealizava o bom governo cristão, espécie de metáfora às virtudes do rei-restaurador. É de esperar que venham a aparecer novas obras de Diogo Pereira em reservas de museus ou colecções privadas portuguesas e estrangeiras, e é sintomático que algumas das obras que foram entretanto identificadas andassem atribuídas à esfera e mesmo aos próprios pincéis de Monsú Desiderio !

BIBL. Maria Rosaria Nappi, François De Nomé e Didier Barra, l'enigma Monsù Desiderio, Milano, Roma, Jandi Sapi Editori, 1991;  Vitor Serrão «Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, 1621-1684», catálogo da exposição Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacquemart-André, Paris, 2001, pp. 51-77; Il mondo della pittura barocca portoghese. Naturalismo e tenebre. 1621-1684», Rosso e Oro. Tesori d’Arte del Barocco Portoghese, Musei Capitolini, Roma, Electa, 2002, pp. 44-61; «O mito do Herói redentor: a representação de Eneias na pintura do Portugal Restaurado», Quintana -- Revista do Departamento de Historia da Arte da Universidade de Santiago de Compostela, nº 1, 2002, pp. 71-82; «Contribuição para o estudo das representações histórico-mitológicas na arte portuguesa do século XVII. O ciclo da «Guerra de Tróia» pelo pintor Diogo Pereira», Actas do Colóquio Antiguidade Clássica: Que Fazer com este Património?, volume de homenagem a Victor Jabouille, org. A. Aires Nascimento, Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras de Lisboa, 2003, pp. 91-100; A. Raczynski, Les Arts en Portugal, Paris, 1846, e Dictionnaire Historique et Artistique du Portugal, Parias, 1847; George Kubler, The Antiquity of Art of Painting by Felix da Costa, Harmondsworth, 1968, pp. 269-270; João Francisco Marques, A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986; idem, A Parenética Portuguesa e a Restauração, 1640-1668. A Revolta e a Mentalidade, 2 vols., I.N.I.C, Lisboa, 1989.